terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

Sobre quem vai estar até o último minuto segurando a minha mão

Fortaleza, 20 de janeiro de 2024.

Venho  refletindo sobre o fim nas últimas semanas. Pensando sobre as tecnologias que nossa psique tem para lidar com os afetos, suas faltas, seus excessos, com as rupturas e continuações. Tem sido um processo curioso. Nesse meio tempo, consegui por para fora um medo que me assombra desde a partida da minha avó: o medo de perder os meus pais. Fui me dando conta, nessas semanas, de que a morte de alguém é ficar o resto da nossa vida sem aquela pessoa. E nós, sujeitos que aprendemos a ludibriar a morte através do que entendemos como medicina, queremos viver muito – logo, é mais tempo que esse “para sempre” assume.

 Algo que vem sendo elaborado desde maio do ano passado é a importância de me integrar. De me juntar. De dar conta de mim. Não sei se em algum momento fui me esparramando demais, chegou num ponto em que eu estava negociando o que não deveria, com quem não podia em nome de alguma coisa que me mantém de pé. Fui refletindo sobre o valor do eu para mim, o valor do outro para mim, o meu valor para o outro e o valor do outro para si mesmo e buemba: não era (e nem sou) sujeito de mim. E de alguma forma, eu não conseguia me dar conta disso.

 Não que eu devo dar conta. Tudo bem não dar conta. Mas gosto da consciência de quê eu não dou conta. Não dar conta porquê simplesmente passei direto, nunca pensei ou observei me soa descuidadoso comigo mesmo.

 Nas reflexões e elaborações, surge uma imagem curiosa: uma criança que deita no chão para que ela mesma passe o giz ao redor do contorno do seu corpo. É uma criança que tenta dar conta do seu tamanho, compreender sua totalidade, entender as partes como algo que quando visto em conjunto, conviemos chamar de eu, de corpo, de meu corpo, de identidade. E nessa imagem, observo que a criança precisa encontrar um outro que a convide a sair de si para que possa desenhar o próprio corpo. Talvez alguém a desenhe primeiro e depois a mostre o contorno do seu corpo. Isso, eu entendo como mediação. Alguém que me desenha quando ainda não posso me desenhar, que me convida a observar o meu contorno sobre o seu ponto de vista. E auxilia na escolha do material que eu usarei para fazer o autocontorno. Será giz? É rápido, fácil e prático, mas não captura a sutileza. Caneta? Muito fina, captura a sutileza, mas é demorado. Lápis preto? Seriam necessárias muitas pausas para apontar. Desenhar no chão? No papel pardo? Desenhar cada pedacinho num a4 e depois juntar tudo?

 Sobre a criança que se desenha, o sujeito que se assombra pela possibilidade da perda dos pais, o que reflete sobre suas tecnologias psíquicas, o que se esparrama e se integra – sempre terei eu de estar lá. Algumas vezes acompanhado, outras sozinho. Quando eu estiver num encontro diante da possibilidade de encontrar alguém que será a pessoa mais interessante que eu conhecerei ou levar um bolo que doerá como alguma rejeição da minha infância: eu estarei lá.

 Mediados ou não. Sendo amparados ou enfrentando o desamparo. Escolhido ou capacitado. Estaremos nós em todas as situações que tivermos de viver.

 A imagem da criança que tenta encontrar alguma forma de se desenhar me mostra isso: de que forma eu vou dar conta de tudo isso que sou e que eu serei convocado a estar ali por mim? Como eu vou deitar no chão e ao mesmo tempo contornar o meu corpo com o giz? Qual material eu vou usar? Como saber se o desenho que fiz reflete o que sou ou se tem algum traço que se afetou pela falta de destreza ou pelo desnível da superfície?

 Somos nós quem estamos por nós, primeiramente, diante de qualquer situação da vida, e por mais que em nível discursivo exista a possibilidade de ver a vida a partir do olhar do outro, em termos de capacidade humana, não vislumbro isso acontecendo. Não acontece porque ainda que eu fosse capaz de trocar de lugar com o outro, seria o meu olhar sobre o olhar do outro. Eu não saio de mim. E por mais que o outro se compadeça e tente compreender o meu lugar no mundo – sou eu quem tenho ou não de dar ou não conta.

 Urge daí, e talvez foi o que me fez pensar nesse texto enquanto eu tomava banho na Praia de Iracema, a necessidade de pacificação do eu com as minhas estruturas. O destensionamento. A coragem de encarar tudo isso que chamo de eu e tentar descobrir o máximo que posso sobre mim mesmo. Enfrentar os fantasmas e descobrir sobre quais sombras eu posso jogar luz e quais serão sempre as minhas sombras. Entender as qualidades e respeitar os defeitos. Saber sobre o que eu posso fazer piada e o que ainda é um mistério doloroso. Destensionar a relação comigo porque serei eu comigo e por mim até o fim. Ou depois do fim, se o houver. Entender que sou o que deu certo e de alguma forma o que deu certo sou eu, ainda nas imperfeições.

 Urge a necessidade do encontro porque ainda que o outro venha – e ele virá na maior parte ou em todas as vezes -, antes dele vir, eu estou aqui. E mesmo ele vindo e segurando a minha mão, somos nós quem teremos de atravessar o que nós teremos que atravessar. O nosso lugar no mundo é nosso, feito sobre medida. Nessa porção de espaço que ocupamos cabe o que é nosso, exatamente nosso. Bom ou ruim, feliz ou triste, com uma história que vou contar ou do que preferia esquecer: é meu. Se pode ser elaborado ou repetido, re-vivenciado ou esquecido: é o meu caminho, meu atravessamento. É minha vida. É minha a vida.

 Até o último minuto gostaria que alguém segurasse a minha mão. Mas não quero que o outro seja o único (e nem talvez o último) a tocar nela. 

sexta-feira, 5 de janeiro de 2024

Aos que já foram

27 anos e muita gente já foi. Algumas foram porque tinham que ir – morreram, se mudaram, perdemos o contato; outras foram porque preferiram ir, tem os que eu quis que fossem e tem os que foram pelo acaso, pelos mal entendidos, pelos ditos e não ditos.

27 anos e foram porque eu também fui. Fui e continuo indo. Me olho no espelho, confronto as minhas fotos e enxergo uma outra existência, com outras ideias, outros hábitos, outras formas de agir e ser. Era outro eu. Outro eu que gestou esse que vos escreve – e que na certeza carrega em seu ventre um outro eu que há de nascer em segundos, minutos, horas, dias, semanas, meses, anos, para essa vida e para a próxima (que pode ser em outra dimensão ou na hora que eu levantar para ir fazer xixi).

27 anos e muita gente foi e sou agradecido pelo tempo em que ficaram. Vez ou outra começo a contar uma história e sinto uma alegria por ter vivenciado o que vivi, ter tido conversas que hoje são bases para as coisas que penso e que uso como pilar para algumas decisões. Tem às vezes em que ouço histórias e sinto que aquela vivência foi importante para o que se deu – peraí, deixa eu agradecer e falar que foi importante. Não sei se antes de ir, eu tive oportunidade de te falar: foi bom ter você aqui.

27 anos e sentindo que também estou sempre indo, já não sei mais se eu quero que as coisas voltem, porque apesar de sentir muita falta, já não sei se cabe. Não sei se eu quero sentar na frente da TV para assistir ao Videogame apresentado pela Angélica ou se faz sentido o Silvio Santos no Roda-roda Chevrolet. Foi muito bom ter chorado comigo mesmo indo para a faculdade achando que não daria conta e ter comido empadinha com Neumar subindo a Bahia, mas olha só, hoje podemos ir comer japonês num lugar legal. E é isso que me deixa em movimento: saber que as coisas estão indo e vindo. Indo, vindo, partindo, chegando, mudando, evoluindo. Para melhor ou não: é o efeito do tempo sobre o eu, sobre o outro, sobre o nós, sobre o que fazemos do eu, do outro, do nós e sobre o que fazemos do que foi feito.

27 anos e eu fui entendendo que de alguma forma todos estamos indo e talvez não faça sentido querer ficar. Até porque, quando temos a cabeça cheia, tudo cabe ali, menos o que ficou de fora. E não dá pra gente manter dentro algo que é de fora – cada coisa tem seu lugar. É sobre isso a nossa jornada.

27 anos e guardo com respeito todas as histórias, experiências e gestos. Fomos o melhor que pudemos – mesmo quando as atitudes não eram das melhores. Nem todos tivemos a oportunidade de desarmar as próprias bombas por si e às vezes escapava de estourar com os outros. Pôr as coisas no lugar é difícil. E palavras então...

27 anos e não me orgulho de todas as coisas e não me sinto certo em todas as vezes.

27 anos e sinto saudades. Saudades no plural. Saudades porque foi bom e me moldou. Saudades porque marcou no tempo algo importante – se foi bom ou não, depende do dia e do ponto de vista. Sou entusiasta da felicidade, para mim foi sempre bom.

27 anos e fui aprendendo a importância do luto. Fazer o luto sempre que o objeto que supre algum desejo se torna indisponível. Seja para a avó falecida ou a caneta que guardamos desde a adolescência: aprender a encarar a falta, o lugar em branco, o vazio, a lacuna, o eco dos cômodos vazios. Não incorrer no erro de tentar preencher de qualquer forma, como se a parte que falta fosse suprível.

27 anos e aprendi que não é porque acabou que é ruim. Foi bom enquanto durou. E entender que as coisas não se inscrevem no tempo de forma definitiva, me ajuda a lidar com quando elas mudarem. As coisas estão. Estão. Estar e não necessariamente ser. Ou se é, é provisório, já que tudo muda.

27 anos e gosto de contar a parte boa das coisas, por mais que sempre fui mais próximo do trágico. Conto das idas ao cinema com aquele amigo legal ou dos cafés da tarde. Gosto de falar dos amigos que se beijavam quando a gente saía ou daquele que mergulhava em questões profundas sobre a existência. Penso nos sonhos, nos papos e no que foi bom.

27 anos e olho para o que foi e reverencio, mas estou atento ao que será. Tenho comigo o compromisso de sempre me lembrar de que o que fui forjou o que sou e o que sou forjará o meu eu do futuro. Não posso parar na estrada e fixar minha mente no quanto já caminhei – preciso olhar para quais rumos a estrada me prometem e como me ponho diante deles. Tenho alegria pelo eu menino, mas me preocupo em deixar o corpo saudável para o eu idoso. Lembro das vezes em que ia bater perna no centro de Belo Horizonte no meio de semana, mas estou de olho no Google Flights para ver as exposições em São Paulo em 2024. Porque eu sei que fui e o que foram, mas eu sei também que serei e que esse é talvez o maior compromisso comigo. Garantir que eu seja e esteja bem, com o coração entregue, com as ideias ventiladas, fiel a mim, negociando o que cabe negócio e firmando o pé no que já se firmou.

27 anos e por mais que eu ame festivais, prefiro ir a shows em um teatro com poltronas numeradas, porque entendi que as coisas tem um tempo e não é necessariamente só cronológico. Gosto da ideia de timing para pensar no tempo certo. E o tempo certo é o tempo do agora. Agora tal coisa não faz mais sentido. E entender que pode ser que volte a fazer sentido daqui a meia hora ou que nunca mais faça. E está tudo bem. Não tem regra.

27 anos e muita gente foi. Mas também muita gente ficou, muita gente vai e muita gente virá. Eu fui, eu fiquei, eu irei, eu virei. E tudo segue do jeito que dá pra ser. Curioso é que eu já disse que amava quem por acaso já foi e para alguém que ficou eu nunca disse.

Não tem regra pra existência.

A gente é o que dá conta. E nem sempre a gente dá conta do que é.

E está tudo bem.

terça-feira, 2 de janeiro de 2024

Meu lugar

Tem um tempo que comecei a me envolver com a ideia de lugar. Lugar onde nos criamos e fomos criados, onde trabalhamos e exercemos nossos ofícios, o lugar do qual falamos sobre determinado assunto. Seria leviano se dissesse que essas ideias vieram por si – e talvez negaria, com esse infiel movimento, o meu envolvimento e a influência do mundo que me cerca.

Todos viemos de um lugar e, talvez, nenhum de nós nunca mais nos retornará a ele. Muitos não retornarão porque preferem não olhar para trás e trazem consigo a concepção de que a vida é daqui para frente. Outros tentarão e nunca estarão de volta – o lugar do qual viemos não existe mais. Não existe como concretude, elementos e talvez até numa mesma configuração espacial: a casa na qual a gente se faz menino passou por grandes mudanças e talvez hoje já haja outros moradores por lá. Ainda que morem as pessoas que moravam lá com a gente, esses não são mais os mesmos.

Do lugar que vim, trouxe elementos que de tempos em tempos tensionam as coisas por dentro. A começar pelo hábito alimentar. As refeições espaçadas – duas ou três no dia –, a pouca variedade de macronutrientes e a predominância dos carboidratos. É assim e sempre foi. A dificuldade em pensar as refeições para além do tradicional pê-efe é um marcador importante. Com alguns quilos a mais do que poderia pela minha altura, é difícil ir contra o que se estabeleceu e parece se reforçar todos os dias.  

Lembro de conversas que tive com alguns amigos sobre meu gosto musical. Sou da MPB. Gosto dos shows sentados, da música calma, com as notas que num arranjo parecem quase uníssonas. Quando me animo, gosto da animação a la Gilberto Gil – a gente se anima e logo já se senta de novo. Quando conversei com os amigos sobre a formação musical, lembro de que prevaleceu uma análise do sertanejo e o entendimento de que são músicas que evocam certo sofrimento amoroso, a construção do trocado, do traído, do abandono, do amante, da infidelidade, quase um tratado da infelicidade.

Me alonguei anos averso ao sertanejo. Seja porque minhas referências musicais no gênero pensam e se situam diferente de mim politicamente, seja porque muitas das letras fazem menção a uma leitura de mundo que eu discorde e sejam reflexo de comportamentos que eu compreendo como sintomas de problemas sociais que temos: machismo, homofobia, patriarcado, racismo, etarismo, consumismo, desigualdade social. Quis distância.

Num sábado ensolarado de setembro, já há alguns setembros, estava dirigindo para o interior de Minas e minha irmã mais velha mandou, no grupo da família, o link de um álbum desses de sertanejo que ouvíamos muito em casa quando éramos menores. Dei o play. Pumba. Foi memorável. Cantei a plenos pulmões, buzinava para todos os caminhoneiros que cruzaram meu caminho e, vez por outra, soltava um berro grave, em alusão a uma brutalidade que o sertanejo supõe.

Me senti vivo. Em paz. Conectado. Próximo. Pertencente.

Quando li Edouard Louis falando sobre o mundo de sua infância, distante geograficamente, mas contemporânea a minha, entendi a sua leitura de mundo – alguém que vivenciou, saiu, racionalizou, entendeu e trouxe para a linguagem os elementos que talvez não façam parte do mundo civilizado. Ou que não sejam bem-vistos. Ou bem quistos. Lembro de terem o posicionado como alguém que deu voz e trouxe visibilidade a todos que são do mundo de onde ele veio. E não me esqueço de dizerem que ninguém o pediu para dar voz...

Experiência semelhante foi ler Annie Ernaux e a ver descrevendo o incomodo do marido em ir visitar os sogros por não conseguir estabelecer diálogo com eles – na narrativa percebemos certo elitismo intelectual. A forma como ela relata sobre o lugar em que veio, a forma como os pais agiam com pessoas de fora, a forma como as pessoas de fora agiam em relação a ela e a sua família. Ficou claro que para a maior parte de nós falta a oportunidade de se pacificar com o lugar de onde viemos.

Não que eu acredite que os autores não pacificaram. Ao contrário: eles expõem que existem a dificuldade em lidar com o mundo do qual viemos. E falar sobre isso, talvez reflita amadurecimento em frente aos sentimentos. Talvez.

O meu lugar passa longe da performance para a qual me visto todos os dias. Normalmente não gosto de estar calçado, de calças ou de camisas para o trabalho. Gosto do pé no chão, da bermuda, da camiseta (algo que incorporei recentemente e veio junto com a aceitação do corpo). Não gosto de conjugar os verbos certos nas frases e nem ter que pensar em coerência e coesão, apesar de admitir que trouxe muito da linguagem do mundo formal para o mundo que chamo de meu lugar.

No meu lugar, gosto de falar alto, de correr e ser eufórico. Gosto da gargalhada e da cerveja na hora do almoço. Acordo pensando na limpeza da casa e já me ponho no mundo para a caminhada – e caminho o mesmo trajeto que faço há 27 anos, porque é a estrada que dá acesso ao bairro onde moro. Caminhando vou observando e pontuando para mim as mudanças geográficas – aqui era a casa do Fulano, ali era o terreno da minha família paterna e hoje é uma escola, foi nesse pedaço que uma vez minha avó contou que pisou em uma cobra que parecia um pedaço de tecido, nessa mata escorria uma água quando eu era menino. Caminhando, também, sou capaz de perceber as inquietações que vão tomando a minha atenção e como elas mudam dia após dia.

O meu lugar mistura o passado, o presente e o futuro e dá a segurança para ser quem sou e me ajuda a sustentar as personas necessárias para que eu possa, ainda que em menor frequência do que eu gostaria, ser o sujeito de pé no chão rindo das amenidades. O meu lugar permite, ainda, que eu reflita sobre ele. Que eu me alimente de elementos que me possibilitam ampliar meu repertório e ir encontrando palavras que nomeam o que é dizível – e me aproximam de compreender o indizível.

Apesar de simples o meu lugar é meu e isso é o que o torna bonito, apesar de nem sempre ser belo; aconchegante, mesmo podendo ser mais confortável; luxuoso, apesar de ser marcado pela simplicidade; correto, mesmo com tantas incongruências. É meu. Ainda que eu coma só macarrão daqui para a frente ou abdique dos carboidratos. Ainda que eu só ouça MPB ou só sertanejo. É meu, mas acolhe. Sou eu e mais um tanto de gente, porque isso eu aprendi sobre o lugar: ele é nosso, mas não necessariamente só nosso. É como quando em uma conversa, alguém diz algo que a gente sabe bem, já vivenciou e, ainda que por milésimos de segundo, sentimos que aquele é o lugar onde deveríamos estar.

É meu.

É meu o meu lugar.

segunda-feira, 25 de dezembro de 2023

Tanto [ou nada] a dizer

 Já faz um tempo que essas linhas se inscrevem em mim. Se fixam em minhas ideias como as coisas que eu deveria estar escrevendo. Tem um tempo que o silêncio se instalou. Há uns dois anos o indizível começou a tomar novos contornos e eu me cansei de abrir o dicionário para buscar uma aproximação para o seu nome. Entendi o silêncio sonoro como alternativa para lidar com o que se põe na mesa — é sonoro porque as ideias fervem, talvez como nunca.

Tenho muita coisa para dizer. Desenho em minha mente um texto em que falo da terapia. Dos encontros quase que semanais com alguém que diante de uma tela de computador me ajuda com que eu me medeie. É alguém que me ajuda a estar entre mim e mim mesmo. É alguém que faz com que eu me escute e me acolha, algo no qual eu sempre fui tão bom em fazer/ser para os demais.

Talvez eu devesse falar sobre os processos, tanto os do tempo, quanto os burocráticos e o quanto aprendi com eles. Gosto da noção kafkiana de processo: o processo se processa e nos processamos enquanto processamos sobre o processo. É um processo amplo, multidimensional e quase metaversico. Tem também os processos da vida — não que os últimos se desvinculem dessa categoria: os lutos feitos, os não feitos que viraram compulsão e os que viraram outra coisa; tem a saudade, as idas, as vindas, as mudanças e tudo o que fiz diante disso.

Seria interessante eu falar sobre os aniversários bizarros. O dia em que minha avó se foi. A última vez em que falei com aquele amigo. As conversas familiares que delinearam algum trauma. A última vez que vi alguns membros da família materna. O dia em que meu cachorro machucou a pata tentando pular o muro. O aniversário dos que não estão mais aqui. Ou preferiram não estar.

Deveria mesmo era escrever sobre meu aniversário de 27 anos e em como de repente tudo fez menos sentido do que antes. E eu precisei parar de me importar. A Ana sugeriu que eu falasse dos 27 anos. Não dei conta. Precisava exortar para o mundo algo que me sustenta — e eu ainda não sei o que é.

Já me peguei refletindo sobre a sensação de pertencimento que vem surgindo de umas semanas para cá e de como eu me reconheço cada vez mais no cenário em que me criei — e de alguma forma sempre o neguei: de pé no chão, sem camisa, conversando alguma amenidade e dando gargalhadas. Ou deitado nos sábados e domingos a tarde com o meu namorado-quase-noivo-marido onde o sol estrala mamonas do lado de fora e nós dividimos o sofá, tão juntos e suados, debaixo de um cobertor e com o ventilador próximo ao rosto.

Talvez fizesse bem falar do meu processo de ida à clínica psiquiátrica e em como os ansiolíticos que regulam alguns processos neurológicos tem me tornado mais funcional e até mais aberto a vida. Nesse sentido, poderia discorrer sobre minha guinada à arte e a criatividade, minhas recorrentes idas (quase que silenciosas) a concertos, uso quase compulsivo de softwares de arte digital, o choro quase mudo sobre qualquer cena bonita que vejo pela vida.

A forma distinta como meus cachorros reagem com a vida talvez me rendessem bons parágrafos — a Phoebe sempre presente, intensa e se jogando em tudo; quase sempre censurada pelos recorrentes excessos. O Joey extremamente seletivo com os estímulos que responde e preza pela pompa de imprevisível; dono de si e sempre nos emociona nos raros episódios de demonstração de afeto. Os hábitos alimentares dos cães talvez fossem uma pauta interessante — a Phoebe come de tudo que oferecemos e come calmamente. O Joey é extremamente seletivo e devora as poucas coisas que o agrada quando é oferecido.

Tanto a dizer, a fazer e a ser.

Vou me perdoar pelo silêncio e pelos não ditos. Sigo apaixonado pela vida e permitirei que todas as linhas do mundo se inscrevam em mim. Se eu as escreverei, não sei. Não sei também o que direi, farei e/ou serei. São muitas portas para abrir e eu continuo aprendendo para que servem as chaves.

Bonita.

A vida é bonita.

Apesar de tudo, a vida é bonita.

quarta-feira, 4 de outubro de 2023

Faxinas por acaso

Acordei hoje inquieto. Tenho estado assim já faz um tempo. Um tempo grande. Acho que começou no dia em que eu me perguntei sobre minha dificuldade em me respeitar – ou facilidade nos autoatropelamentos. De lá para cá, tem sido essa inquietação constante.

Acordei hoje inquieto e quis pôr o corpo para jogo. Uns afagos com o moreno, leitura de umas páginas do livro, abrir a portas para os cachorros irem lá fora... não bastou. Fui tomar café com um amigo. Falamos da rotina, do trabalho, dos planos de compras, de família, dos planos para o feriado. Encontrei a calma nesse encontro.

De volta em casa, senti a inquietação me levar a lavar uma vasilha aqui, limpar a gaveta da geladeira ali, organizar os copos, pensar em mudar os vasos das plantas, guardar os pacotes de folhas. Tudo foi sendo tocado, como se a inquietação precisasse se expandir – ou talvez não aguentasse mais ser contida. Pensei nos planos para o feriado. Nada que encha os olhos. Pensei no cardápio para o almoço. Nada que desse água na boca. Pensei na trilha sonora. Nada que tocasse a alma.

Limpei a gaveta, organizei os copos, minha mãe se ofereceu para trocar os vasos das plantas, guardei os pacotes de folhas e segui pela casa. Guardar as roupas ali, lavar o banheiro aqui, tirar a poeira acolá, juntar os livros soltos pela casa, passar o pano em todo o espaço.

Ainda inquieto me dei conta da faxina. Da limpeza. Do cuidado. Do labor. Do respeito. Do zelo. Da preservação. Da mudança. Da valorização.

Peguei uma concha que trouxe de Natal e ouvi o mar. O som do mar é o som do vento, pensei. Ouvi o mar e pensei na viagem para o Rio de Janeiro que estou me demorando a fazer. Melhor ir para o interior, me contrapus. Ou ficar em casa e juntar dinheiro para a viagem de janeiro, segui enumerando para mim. A inquietude leva a isso. Isso não, aquilo. Aquilo também não, esse outro.

Pus a concha no lugar e organizei meus santos. Iemanjá no fundo, São Jorge e São Jerônimo lado-a-lado e Nossa Senhora Aparecida na frente. Mulheres a frente e na retaguarda. A força do feminino que protege, amamenta, garante a vida, que cuida, que mantém o equilíbrio, que organiza. A força do feminino presente no dia do olhar para dentro e da faxina por acaso.

Desde que comecei a estar inquieto vem me agradando a quietude do autorrespeito. Verbalizar as minhas querenças e não querenças sem insistir. Dar voz ao desejo. Acalma a inquietude interna buscar a quietude externa e nesse momento, sinto que preciso dar isso a mim.

Ontem no dentista veio a prévia do diagnóstico de uma sinusite ocasionada por uma retirada de dentes. Voltando para casa me lembrei que quando retirei os dentes, precisei interromper meu repouso para ser útil em umas questões familiares e não segui tão a risca a parte do absoluto do recomendado repouso absoluto. Senti na boca o amargo – mais uma vez passei por cima.

A sinusite que começa a incomodar com um edema no rosto, a faxina por acaso, a inquietação que só se acalma com a quietude, as reflexões sobre os atropelamentos que faço comigo, a sensação de que nada agrada...

Penso no Caio Fernando Abreu em Outonos por dentro e em Breve introdução ao ciclo seco. Penso que é final de inverno e a chuva volta a fazer parte do dia a dia. Penso no florescimento que vem com a primavera. Lembro que é setembro e que já estamos cansados. Lembro que essa é a vida pós pandemia e que talvez ainda não aprendamos a continuar existindo.

 Lembro e, ao som de Mogli – Wanderer, transbordo. Transbordo na casa limpa e organizada. Transbordo fiel a inquietude que é tão minha e que me lembra que preciso ser por mim. Transbordo porque depois de tudo não posso mais nada senão transbordar. Transbordo porque já não me caibo e crescer é não caber.

Forjei uma roupa e ela já não me cabe dentro. Forjei uma vida e não sei se ela continua sendo minha.

Faxinas, acasos, forjamentos, transbordes, conchas e sons do mar... a vida continua.

sexta-feira, 8 de julho de 2022

Voltando para dentro

             Gosto de pensar na beleza interna de cada coisa. Uma cena que tem me alegrado muito – e me emocionado com certa intensidade – é quando minha irmã acaricia a sobrancelha do meu sobrinho até ele adormecer. Fico pensando na intimidade construída a ponto de perceber na sobrancelha um lugar de calmaria, repouso, tranquilidade, mansidão. É uma cena que atravessa a beleza dos gestos mãe-filho e se encontra com nosso instinto de reconhecer o belo na natureza.

Pensar na beleza subjetiva do que está em volta traz para a cena a grandeza do outro. E entendo que repertórios nos levam para o processo de afiar a sensibilidade; e estar sensível ao mundo constrói novos repertórios. E esse processo se retroalimenta: vamos nos sensibilizando pelas cenas da vida e nos tornando sensíveis a partir das cenas da vida.

A partir dessas cenas que vamos compondo partindo da observação do outro nos leva a refletir sobre as nossas relações com essas cenas. Em terapia, já alonguei muito falando sobre como alguém agia e no meio da fala percebi ser eu quem estava sendo descrito.

As cenas que construímos são essencialmente mesmo sobre o outro?

Nada mais belo do que uma mãe que aninha seu filho, num gesto que é instintivo. A mãe que reconhece nos grunhidos se é hora de tirar ou pôr uma peça de roupa, se é a mamadeira ou o sono que faltam. Se quer ficar em pé ou deitado. E até mesmo a necessidade do meio-termo.

Nada mais belo do que ser aninhado por uma mãe. Troque mãe por alguém que você julga que poderia te aninhar e levaria para essa experiência do materno. Nada tão bom quanto ter seus grunhidos primitivos ouvidos, atendidos, compreendidos.

Penso nas cenas bonitas como possibilidades de construção de novas memórias afetivas. Vendo minha irmã aninhando meu sobrinho me faz pensar sobre esse amor que atravessa e que cobra compromisso, disposição, calma, energia.

E penso também em cada uma das crianças da escola que não sei se são aninhadas em casa. E nas famílias que não sei se sabem que podem só aninhar os seus filhos.

Conversando com Rita nessa semana, concluímos que talvez o que podemos fazer de mais importante ao trabalhar com as crianças e suas famílias é auxiliar no processo de proximidade entre as partes. Conversar com as famílias sobre necessidades e afetos. E a necessidade do afeto. E os afetos que partem da necessidade.

É bom estar de volta.

domingo, 3 de julho de 2022

Jetinho

 Texto publicado em 13 de janeiro de 2022 no Resista ORP sob pedido de anonimato. Link: https://resistadotblog.wordpress.com/2022/01/13/jeitinho/


Tenho dificuldade em me conectar com as pessoas do bairro onde moro. Desde criança, fui apontado como a criança que tinha o jeitinho. Aquele que falava fino, andava rebolando, tinha um manejo diferente das mãos, que tinha uma fala nasal. “Por que você fala assim?”

Apontavam como jeitinho por talvez quererem amenizar e não dizerem: os seus trejeitos são diferentes daqueles esperados para um menino. Um dos problemas da ideia de masculino-feminino é este: ou você se comporta como menino ou como menina. O binarismo não deixa espaço para uma existência diversa, múltipla, mista. Ou é uma coisa ou é outra. E muitos de nós morremos por não nos encaixar num extremo ou no outro.

Quando dizem que um menino tem jeitinho, no fundo estão querendo dizer que seus trejeitos são feminilizados. Me oponho ferozmente a essa ideia: sabemos da complexidade da construção da identidade de gênero – será que há espaço para categorizar tão cedo características que são tão sutis e subjetivas?

Queria ter crescido tranquilo com meus jeitinhos. Mas o tempo todo me lembravam o quanto eles eram ruins. O quanto eu era um ser-humano pior por não me comportar puramente como um menino. O tempo todo falavam do jeitinho puxando uma fala debochada, um riso maldoso no canto do lábio, uma troca de olhares com outro algoz que fazia com que eu me sentisse ridículo. Como o menino com jeitinhos do bairro pequeno, não houve muito espaço para resistência.

Me mataram tantas vezes eles quiseram.

Me mataram quando não deixavam seus filhos serem meus amigos. Depois me mataram quando eu estava chamando os cachorros na rua e disseram para o meu pai que eu chamava meus cachorros como uma menina. Me mataram ainda quando meu tio deu uma surra no meu primo para ele “virar homem”. Me mataram quando cuspiam em mim pela janela do ônibus que passava ao meu lado quando eu voltava para casa depois da escola.

E com isso, as mortes foram se somando.

Do lado da família estendida, a cada ano aumentava a cobrança por uma namorada. Até que eu arrumei uma. E me machuquei e a machuquei também. Depois de um tempo, quis parar de ouvir aquelas perguntas. Em algum lugar, admiti para mim que eu nunca teria uma namorada. E parei de ir ver meus parentes.

Quando eu comecei a admitir que gostava de garotos, muitos me disseram que já sabia. Não tinha jeito – o jugo do jeitinho sempre estaria por perto. Será que para sempre eu continuaria sendo lido?

Houve momentos em que pude ouvir outros meninos gays discorrerem sobre a relação do mundo com o jeitinho deles. Teve um a quem a mãe sempre disse para não correr com as mãos para cima e que apanhou do pai por querer dormir com um amiguinho quando criança. Tem aquele a quem a mãe sempre disse para evitar gritinhos em espaços públicos. E muitos de nós, hoje adultos de barba na cara e tudo, tentamos diariamente ressignificar nossas memórias e encontrar novos espaços e possibilidades de vivências.

Mas ainda é difícil, porque o mundo no qual você se formou foi o que tentou te ensinar que há algo de errado com você. E entre calar a si mesmo ou aos outros, você aperta o botão do mudo e espera o silêncio do mundo.

Mas daí você sai de casa num dia e vê as mesmas pessoas que te apontavam a vida inteira na porta de um bar rindo. Será que quando eu passar, elas vão rir de mim? E quando um ônibus escolar passa do seu lado, você ainda fecha os olhos 15 anos depois: a cuspida virá, a cuspida virá, a cuspida virá.

De modo geral, você descobre uma forma de existência no mundo e aprende o quanto o seu jeitinho é parte de si mesmo. E encontrará pessoas que estarão dispostas a falar das suas lembranças difíceis e acolher as suas memórias. E as coisas vão ficar bem, um pouquinho mais a cada dia.

É só seu o seu jeitinho e ele é bonito.

Acredite.

segunda-feira, 15 de novembro de 2021

Descontrole controlado

Eu não gosto de escrever. Gosto da sensação de ter escrito.

Essa frase não é minha. Também não conheço quem a citou originalmente. Li, em um texto sobre avaliação da produção textual dos alunos nas aulas de Língua Portuguesa, que essa frase é de um moço jornalista. 

Sei seu nome. Mas não lembro. Será que posso saber apesar de não me lembrar?

Talvez eu esteja escolhendo não lembrar. Um ou dois googles me garantiriam a proeza de saber de verdade o nome do moço. Poderia começar, até, esse texto com uma epígrafe, com aspas, itálico e tudo. Mas não.

Por que não?

Ou seria por quê não?

Porque não?

Porquê?

Entre uma vontade e outra de saber, de dar conta de todos os saberes, de racionalizar, quantificar, metrificar, será não saber uma espécie de alento? Ou será que é a necessidade de se afirmar que não se sabe - e com isso supor que não se tem controle diante de algo que está totalmente sobre controle?

Tenho um amigo que afirma em todas as nossas conversas que não está esquentado a cabeça com nada. Mas sempre está correndo de um lugar para outros, ideias daqui, ideias de lá. E com a cabeça sempre quente.

Acho que ele não pensa sobre isso. Mas a gente tá segurando uma corda com todas as nossas forças dizendo que não temos que ter controle sobre o que não tem necessidade. Mas seguramos tão forte essa corda que estamos com as mãos sangrando. E mesmo negando que tenhamos necessidade de segurar a corda, não sabemos porque somos incapazes de solta-la.

Eu não preciso descobrir o nome do autor para ser completo. Preciso lidar com o que falta. 

Preciso lidar com o não saber. 

Preciso lidar com a imprecisão. 

Preciso lidar com

Armando Nogueira.

quinta-feira, 14 de outubro de 2021

Gonzos, gozos e parafusos

 Talvez sempre sobrem parafusos depois que eu terminar de montar os móveis.

 Acordei pensando nisso outro dia. Quis saber, primeiro, o porquê sempre se sobra parafusos. E em como esse excesso diz muito sobre uma existência expansiva, recheada de hipérboles e superlativos.

 Pensei, em seguida, que talvez não se tratasse de ser o excesso de parafusos e sim uma ausência de furos suficientes. Fiquei supondo que talvez pessoas que desenham a estrutura dos móveis não sejam as mesmas que projetam seu design e que o moço que faz os furos talvez não seja o mesmo que separa o número de parafusos em cada pacotinho.

 Pensei também que é muito nova essa coisa da gente montar nossos moveis. É algo que veio junto com a compra de móveis pela internet. Antes, o montador era parte da experiência de comprar móveis em lojas físicas.

 Pensei ainda sobre como a perda do processo de i) visitar loja física, ii) escolher móvel, iii) sentar-se para negociar com o vendedor, iv) comprar o móvel, v) deixar alguém em casa esperando o móvel ser entregue, vi) receber o entregador, vii) deixar alguém em casa esperando o montador, vii) receber o montador, tem feito a gente perder alguma coisa. Não consegui definir o que, mas perdemos.

 Depois de quase escrever um manifesto sobre como deveria ser a nossa relação com os móveis, me dei conta de que com parafusos a mais ou buracos a menos, em compras virtuais ou físicas, em julgamento sobre ser funcional ou disfuncional nossas relações de consumo, me dei conta que os móveis seguem de pé, cumprindo o que lhes é esperado, garantindo uma harmonia minimamente coerente com o ambiente, servindo ao que lhe delegaram, suportando o peso que prometeram.

 Apesar de não ser equilibrada e talvez ideal a forma como um móvel é projetado, construído e nem ter os seus atores devidamente reconhecidos, o móvel ainda cumpre o que lhe é desejado.

 Sua madeira pode ser de origem limpa, ou fruto do desmatamento ilegal que assola o país; foi comercializado por uma empresa que pega todos os impostos, ou talvez sonegue parte deles; foi transportado por populares que respeitaram a fragilidade de sua composição, ou simplesmente tratado como um objeto e não ter lhe sido dispensado o cuidado desejado; ainda assim ele cumpre o que lhe é esperado.

 Com falta ou em excesso, ainda é completo em si. E não é isso o que mais importa, – ou deveria importar?



O título desse texto é uma releitura do nome dado por Paula Parisot a "Gonzos e parafusos". 

domingo, 12 de setembro de 2021

Carta de amor

 Para ser lido ao som de Vida A Dois da banda Mar Aberto.

           

Tantos dias juntos e um número maior de dias separados, nos trouxeram até aqui. Moços com mais de 25, rapazes que tiveram que aprender os sabores doces e amargos do que é amar rapazes e com uma vontade de viver. Viver muito. Viver cada momento. Viver tudo o que se pode. Viver duas coisas juntas - como comer batata frita com milk shake - com medo de não dar tempo de tudo.

Tantos dias juntos e um número maior de dias separados e eu ainda não perdi a mania de contar quantos dias faltam para você chegar. Pode ser uma falta tremenda de afeto. Ou pode ser só a saudade do seu calor. O calor do seu corpo, o calor da corpulência, o calor das palavras, das tardes à toa vendo TV, o calor das panelas no fogão, o calor da sua perna encostando na minha mão enquanto eu passo marcha. O calor de você juntinho comigo enquanto participamos de videochamadas aos sábados de manhã. O calor de você mimando os cachorros. O calor que é só ver você.

Com você, basta te ver, mais nada.

Só te ver.

Tantos dias depois e mais um monte para a frente e você se abriu para que as suas flores floresçam. É um processo bonito de se ver, mas ao mesmo tempo extremamente complicado: e quando for eu quem tiver de te regar, será que serei tão cuidadoso como você foi comigo quando minhas flores precisaram de água? Será que eu serei capaz de ouvir suas outras vozes que saem cada vez mais potentes e anunciam a força desse homem, que apesar de calmo, sereno, tenro, tem muito a dizer, a ser, a viver.

Tantos dias depois juntos e a promessa de vivermos juntos ainda pela vida inteira e tudo o que eu posso te dizer é que eu te compreendo, mas ainda tateio na arte que é entender você. Como quem lê livros, eu tento te ler, sei o significado dos conceitos, mas hesito na arte de entender todo esse universo que aos poucos se expande um pouco mais.

Tantos dias depois juntos e com uma lista infinita de pratos para fazermos juntos eu comecei a conhecer o seu paladar. A sua mania de me contar o que comeu - no almoço, lanche ou jantar - e descrever minuciosamente as nuances de cada alimento: a carne estava cozida assim, a sanduíche tostado por fora e macio por dentro, a fatia de pizza com muito frango desfiado. A sua mania de querer que a gente cozinhe juntos e de sempre tentar algo novo: Daniboy, quais temperos temos?

Tantos dias juntos e tantos dias de despedida, ainda tenho lágrimas para chorar a projeção do que será a nossa despedida. Você sabe, eu sei, que nos viramos bem longe um do outro. É aquela coisa de acordar, vestir roupa, ir trabalhar, voltar para casa, conversar um com o outro, fazer planos, ir para a cama. Mas queremos mais. Sabemos que podemos mais. E por isso o choro: eu sei que eu me viro bem longe de você e que você se vira longe de mim, mas não quero isso. Choro por julgar ser insuportável chegar em casa e faltar a sua alegria para somar junto com a alegria dos cachorros. Mas eu sempre chego em casa e está tudo bem. Choro pela projeção da sua falta, pela sua parte vazia no quarto, por ser só um copo para ser lavado depois do café.

Tantos dias depois juntos, tantos outros que nos tornamos, tantos limites quebrados, tantos quilômetros percorridos, tantos pratos de comida que fizemos juntos, tantos desafios que passamos, tantos problemas, tantas soluções, tantas roupas que sujamos, tantas vezes que achamos que não tinha mais jeito, tantas vezes que encontramos novos jeitos, tantas idealizações e tantas realidades, eu não poderia querer um a gente diferente de tudo que somos. Mesmo com os parafusos para pôr no lugar, com os móveis para trocar, as paredes para pintar, a distância para superar. É a gente. Sempre a gente. Tão a gente. Pela gente. Com a gente. É a gente com a gente. E eu amo isso. Eu amo você por isso. Eu me amo por isso.

Eu amo a gente por isso. Tudo isso. Por isso e tantos issos que virão espero ansiosamente a sexta-feira. E o dia em que todos os dias serão as nossas sextas-feiras.

Nossos universos nunca foram tão amplos - e eu te amo demais por isso.