Fortaleza, 20 de janeiro de 2024.
Venho refletindo sobre o fim nas últimas semanas. Pensando sobre as tecnologias que
nossa psique tem para lidar com os afetos, suas faltas, seus excessos, com as
rupturas e continuações. Tem sido um processo curioso. Nesse meio tempo,
consegui por para fora um medo que me assombra desde a partida da minha avó: o
medo de perder os meus pais. Fui me dando conta, nessas semanas, de que a morte
de alguém é ficar o resto da nossa vida sem aquela pessoa. E nós, sujeitos que
aprendemos a ludibriar a morte através do que entendemos como medicina,
queremos viver muito – logo, é mais tempo que esse “para sempre” assume.
Algo
que vem sendo elaborado desde maio do ano passado é a importância de me
integrar. De me juntar. De dar conta de mim. Não sei se em algum momento fui me
esparramando demais, chegou num ponto em que eu estava negociando o que não
deveria, com quem não podia em nome de alguma coisa que me mantém de pé. Fui
refletindo sobre o valor do eu para mim, o valor do outro para mim, o meu valor
para o outro e o valor do outro para si mesmo e buemba: não era (e nem sou)
sujeito de mim. E de alguma forma, eu não conseguia me dar conta disso.
Não
que eu devo dar conta. Tudo bem não dar conta. Mas gosto da consciência de quê
eu não dou conta. Não dar conta porquê simplesmente passei direto, nunca pensei
ou observei me soa descuidadoso comigo mesmo.
Nas
reflexões e elaborações, surge uma imagem curiosa: uma criança que deita no chão
para que ela mesma passe o giz ao redor do contorno do seu corpo. É uma criança
que tenta dar conta do seu tamanho, compreender sua totalidade, entender as
partes como algo que quando visto em conjunto, conviemos chamar de eu, de
corpo, de meu corpo, de identidade. E nessa imagem, observo que a criança
precisa encontrar um outro que a convide a sair de si para que possa desenhar o
próprio corpo. Talvez alguém a desenhe primeiro e depois a mostre o contorno do
seu corpo. Isso, eu entendo como mediação. Alguém que me desenha quando ainda
não posso me desenhar, que me convida a observar o meu contorno sobre o seu
ponto de vista. E auxilia na escolha do material que eu usarei para fazer o
autocontorno. Será giz? É rápido, fácil e prático, mas não captura a sutileza.
Caneta? Muito fina, captura a sutileza, mas é demorado. Lápis preto? Seriam
necessárias muitas pausas para apontar. Desenhar no chão? No papel pardo?
Desenhar cada pedacinho num a4 e depois juntar tudo?
Sobre
a criança que se desenha, o sujeito que se assombra pela possibilidade da perda
dos pais, o que reflete sobre suas tecnologias psíquicas, o que se esparrama e
se integra – sempre terei eu de estar lá. Algumas vezes acompanhado, outras
sozinho. Quando eu estiver num encontro diante da possibilidade de encontrar
alguém que será a pessoa mais interessante que eu conhecerei ou levar um bolo
que doerá como alguma rejeição da minha infância: eu estarei lá.
Mediados
ou não. Sendo amparados ou enfrentando o desamparo. Escolhido ou capacitado.
Estaremos nós em todas as situações que tivermos de viver.
A
imagem da criança que tenta encontrar alguma forma de se desenhar me mostra
isso: de que forma eu vou dar conta de tudo isso que sou e que eu serei
convocado a estar ali por mim? Como eu vou deitar no chão e ao mesmo tempo
contornar o meu corpo com o giz? Qual material eu vou usar? Como saber se o
desenho que fiz reflete o que sou ou se tem algum traço que se afetou pela
falta de destreza ou pelo desnível da superfície?
Somos
nós quem estamos por nós, primeiramente, diante de qualquer situação da vida, e
por mais que em nível discursivo exista a possibilidade de ver a vida a partir
do olhar do outro, em termos de capacidade humana, não vislumbro isso
acontecendo. Não acontece porque ainda que eu fosse capaz de trocar de lugar
com o outro, seria o meu olhar sobre o olhar do outro. Eu não saio de mim. E
por mais que o outro se compadeça e tente compreender o meu lugar no mundo –
sou eu quem tenho ou não de dar ou não conta.
Urge
daí, e talvez foi o que me fez pensar nesse texto enquanto eu tomava banho na
Praia de Iracema, a necessidade de pacificação do eu com as minhas estruturas.
O destensionamento. A coragem de encarar tudo isso que chamo de eu e tentar
descobrir o máximo que posso sobre mim mesmo. Enfrentar os fantasmas e
descobrir sobre quais sombras eu posso jogar luz e quais serão sempre as minhas
sombras. Entender as qualidades e respeitar os defeitos. Saber sobre o que eu
posso fazer piada e o que ainda é um mistério doloroso. Destensionar a relação
comigo porque serei eu comigo e por mim até o fim. Ou depois do fim, se o
houver. Entender que sou o que deu certo e de alguma forma o que deu certo sou
eu, ainda nas imperfeições.
Urge
a necessidade do encontro porque ainda que o outro venha – e ele virá na maior
parte ou em todas as vezes -, antes dele vir, eu estou aqui. E mesmo ele vindo
e segurando a minha mão, somos nós quem teremos de atravessar o que nós teremos
que atravessar. O nosso lugar no mundo é nosso, feito sobre medida. Nessa
porção de espaço que ocupamos cabe o que é nosso, exatamente nosso. Bom ou
ruim, feliz ou triste, com uma história que vou contar ou do que preferia
esquecer: é meu. Se pode ser elaborado ou repetido, re-vivenciado ou esquecido:
é o meu caminho, meu atravessamento. É minha vida. É minha a vida.
Até
o último minuto gostaria que alguém segurasse a minha mão. Mas não quero que o
outro seja o único (e nem talvez o último) a tocar nela.
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