domingo, 20 de novembro de 2016

Desculpe o transtorno, preciso falar sobre o Festival Sarará

Fui ao festival Sarará em BH.  Tudo muito organizado, duas entradas  duplas,  pessoas para  dar informação,  música  Boa,  qualidade do som,  muita luz e pessoas simpáticas.  Teve gaymada  com um grupo de trans performistas,  gritos e mais gritos contra a opressão,  contra a discriminação  por cor,  orientação  sexual,  pessoas bem vestidas e com estilos de cabelo bastante alternativos,  espaço  para grafites.  Tinha muita  coisa,  mesmo.  Mas faltou  o principal: gente de verdade. 

O festival aconteceu  no parque Municipal de BH,  que é  um espaço  público.  Porém a atração  era paga.  E longe de que isso  seja o fim do mundo : o parque das mangueiras  também  é  tido como espaço  público e sempre  é  palco de algum evento. O fato pelo qual chamo a atenção é  que o evento aconteceu em um espaço  público com preço  que não  fez jus a ideia  da atração: representatividade,  desconstrução,  inclusão.  Não fui o único a perceber que não  tinham pessoas de periferia lá.  O evento não era para integrar essas pessoas.  Sou de periferia e sei bem quando uma coisa é  para o povo e quando não. Sarará  não  foi para o povo.  Tinham alguns negros,  em uma quantidade assustadoramente  menor que brancos,  e  as trans presentes traziam  em seu semblante  o ápice  do glamour,  do luxo,  da confiança  e  da ostentação.  Fiquei triste.  Mais uma  vez a periferia não se fez presente. 

O evento estava vazio.  Dos 5 lotes prometidos de ingresso,  não esgotou o terceiro,  e quem estava dentro,  sentiu no bolso um preço  exorbitante de produtos,  que por si,  já  pagavam o valor do ingresso.  Lata de cerveja 350 ml?  7 pilas.  Água  500 ml?  6 pilas. Hot dog?  10 pilas.  

Os cantores  todos gritavam contra um tipo de repressão. MC Marechal encheu nossos olhos de lágrima com a sua segunda música na noite.  Criolo  cantava a desconstrução,  falava da violência contra a mulher,  mas tinha ao fundo uma barraca que  vendia seus produtos oficiais que iam desde camisas com seu rosto estampado até  uma cerâmica com sua face estampada. No evento predominava grandes barracas  que pareciam  verdadeiros  bares e restaurantes e nas placas,  grandes nomes como os da Savassi,  e que tinham um preço  tabelado.  Não  tinha como discutir,  pedir um real mais barato ou comprar em outro lugar.  As barracas eram com produtos permitidos  com os preços tabelados e do lado de fora de tudo,  do evento e do espaço púbico,  pessoas tentavam vender sua bebida,  sua comida,  na humildade. Até  para entrar para trabalhar  não podiam.  

Liniker,  que eu amo tanto,  cometeu uma gafe. Gritou: vamos ocupar os espaços  públicos.  Acho que foram românticos  com ele ao dizer que aquele espaço era publico.  O espaço  foi público naquele dia das 09 às  17 e no domingo seria das 09 as 17.  Mas não foi durante o Sarará. Aquele parque estava todas as coisas,  menos público. 

Em uma hora fui brincar de grafitar. Grafitei  uma palavra,  meu primo não tinha grafitado nada.  Um fotógrafo convidou ele para grafitar e o fotógrafo tiraria  fotos.  Meu primo foi.  Pegou a lata,  grafitou por um bom tempo,  O fotógrafo  filmou,  bateu fotos,  olhou o visor da câmera e foi  embora,  do nada,  sem despedir. 

Uma travesti gritou a todos para que pensassem porque  naquele espaço  não estavam os negros  e trans de periferia.  Foi o mais sensato dos gestos.  Mais sensato que os gritos de Fora Temer.  Gritaram Fora Temer várias vezes,  talvez era verdadeiro em todos os corações,  talvez era só  uma questão de aceitação  social de si. 

Se eu puder resumir o que foi o Sarará,  foi um evento elitista,  branco,  que além de caro,  segregou pessoas,  deixou do lado de fora os vendedores de cerveja e refrigerante que deixaram na noite de sábado o conforto de casa para correr atrás de um dinheiro.  Foi um evento que deixou de fora os verdadeiros reprimidos,  os verdadeiros resistentes. Foi um evento que vendeu uma imagem de naturalidade,  mas era forçado,  muita gente sentia.  Era uma prisão dentro de um mundo prisioneiro. Você  tinha uma qualidade de cerveja.  Uma qualidade de água.  Uma qualidade de refrigerante.  Um lugar que vendia cada tipo único de comida.

Você  não podia entrar com garrafa de água,  bebida ou Guarda chuva.  Pagamos para ser humilhados,  ser revirados.  Pagamos para gritar por uma liberdade por alguém que não estava lá.  Nesse sentido,  prefiro me ater aos sarais de poesia que pelo menos abrem a porta a todos. 

O preço  cobrado pelo Sarará foi muito alto: pagamos pelas telas led,  pelas entrevistas simultâneas,  pela segurança  reforçada,  pela iluminação  impecável,  pelos bares hiper refinados,  pelas barracas selecionadas, pagamos pela segregação e tudo isso num espaço público.  

Eu paguei um  preço a mais: paguei com minha sanidade,  com os meus sentimentos e com a esperança  de um  lugar onde todos pudessem  ser quem eles eram.  Mas "todos" não cabia no Sarará e vejo que é  hora de repensar que palavras bonitas são essas que estão  no banner,  nós panfletos,  nas bocas dos apresentadores e não  na essência.  Não  no coração.  

Eu saí  de casa  para ver gente,  ver o povo que luta,  resiste e grita contra o sistema.  Era melhor ter ido nos bares ao centro de BH ou ficado no meu bairro  mesmo.  Pelo menos o riso não parecia  pago.

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