quarta-feira, 4 de outubro de 2023

Faxinas por acaso

Acordei hoje inquieto. Tenho estado assim já faz um tempo. Um tempo grande. Acho que começou no dia em que eu me perguntei sobre minha dificuldade em me respeitar – ou facilidade nos autoatropelamentos. De lá para cá, tem sido essa inquietação constante.

Acordei hoje inquieto e quis pôr o corpo para jogo. Uns afagos com o moreno, leitura de umas páginas do livro, abrir a portas para os cachorros irem lá fora... não bastou. Fui tomar café com um amigo. Falamos da rotina, do trabalho, dos planos de compras, de família, dos planos para o feriado. Encontrei a calma nesse encontro.

De volta em casa, senti a inquietação me levar a lavar uma vasilha aqui, limpar a gaveta da geladeira ali, organizar os copos, pensar em mudar os vasos das plantas, guardar os pacotes de folhas. Tudo foi sendo tocado, como se a inquietação precisasse se expandir – ou talvez não aguentasse mais ser contida. Pensei nos planos para o feriado. Nada que encha os olhos. Pensei no cardápio para o almoço. Nada que desse água na boca. Pensei na trilha sonora. Nada que tocasse a alma.

Limpei a gaveta, organizei os copos, minha mãe se ofereceu para trocar os vasos das plantas, guardei os pacotes de folhas e segui pela casa. Guardar as roupas ali, lavar o banheiro aqui, tirar a poeira acolá, juntar os livros soltos pela casa, passar o pano em todo o espaço.

Ainda inquieto me dei conta da faxina. Da limpeza. Do cuidado. Do labor. Do respeito. Do zelo. Da preservação. Da mudança. Da valorização.

Peguei uma concha que trouxe de Natal e ouvi o mar. O som do mar é o som do vento, pensei. Ouvi o mar e pensei na viagem para o Rio de Janeiro que estou me demorando a fazer. Melhor ir para o interior, me contrapus. Ou ficar em casa e juntar dinheiro para a viagem de janeiro, segui enumerando para mim. A inquietude leva a isso. Isso não, aquilo. Aquilo também não, esse outro.

Pus a concha no lugar e organizei meus santos. Iemanjá no fundo, São Jorge e São Jerônimo lado-a-lado e Nossa Senhora Aparecida na frente. Mulheres a frente e na retaguarda. A força do feminino que protege, amamenta, garante a vida, que cuida, que mantém o equilíbrio, que organiza. A força do feminino presente no dia do olhar para dentro e da faxina por acaso.

Desde que comecei a estar inquieto vem me agradando a quietude do autorrespeito. Verbalizar as minhas querenças e não querenças sem insistir. Dar voz ao desejo. Acalma a inquietude interna buscar a quietude externa e nesse momento, sinto que preciso dar isso a mim.

Ontem no dentista veio a prévia do diagnóstico de uma sinusite ocasionada por uma retirada de dentes. Voltando para casa me lembrei que quando retirei os dentes, precisei interromper meu repouso para ser útil em umas questões familiares e não segui tão a risca a parte do absoluto do recomendado repouso absoluto. Senti na boca o amargo – mais uma vez passei por cima.

A sinusite que começa a incomodar com um edema no rosto, a faxina por acaso, a inquietação que só se acalma com a quietude, as reflexões sobre os atropelamentos que faço comigo, a sensação de que nada agrada...

Penso no Caio Fernando Abreu em Outonos por dentro e em Breve introdução ao ciclo seco. Penso que é final de inverno e a chuva volta a fazer parte do dia a dia. Penso no florescimento que vem com a primavera. Lembro que é setembro e que já estamos cansados. Lembro que essa é a vida pós pandemia e que talvez ainda não aprendamos a continuar existindo.

 Lembro e, ao som de Mogli – Wanderer, transbordo. Transbordo na casa limpa e organizada. Transbordo fiel a inquietude que é tão minha e que me lembra que preciso ser por mim. Transbordo porque depois de tudo não posso mais nada senão transbordar. Transbordo porque já não me caibo e crescer é não caber.

Forjei uma roupa e ela já não me cabe dentro. Forjei uma vida e não sei se ela continua sendo minha.

Faxinas, acasos, forjamentos, transbordes, conchas e sons do mar... a vida continua.

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