terça-feira, 2 de janeiro de 2024

Meu lugar

Tem um tempo que comecei a me envolver com a ideia de lugar. Lugar onde nos criamos e fomos criados, onde trabalhamos e exercemos nossos ofícios, o lugar do qual falamos sobre determinado assunto. Seria leviano se dissesse que essas ideias vieram por si – e talvez negaria, com esse infiel movimento, o meu envolvimento e a influência do mundo que me cerca.

Todos viemos de um lugar e, talvez, nenhum de nós nunca mais nos retornará a ele. Muitos não retornarão porque preferem não olhar para trás e trazem consigo a concepção de que a vida é daqui para frente. Outros tentarão e nunca estarão de volta – o lugar do qual viemos não existe mais. Não existe como concretude, elementos e talvez até numa mesma configuração espacial: a casa na qual a gente se faz menino passou por grandes mudanças e talvez hoje já haja outros moradores por lá. Ainda que morem as pessoas que moravam lá com a gente, esses não são mais os mesmos.

Do lugar que vim, trouxe elementos que de tempos em tempos tensionam as coisas por dentro. A começar pelo hábito alimentar. As refeições espaçadas – duas ou três no dia –, a pouca variedade de macronutrientes e a predominância dos carboidratos. É assim e sempre foi. A dificuldade em pensar as refeições para além do tradicional pê-efe é um marcador importante. Com alguns quilos a mais do que poderia pela minha altura, é difícil ir contra o que se estabeleceu e parece se reforçar todos os dias.  

Lembro de conversas que tive com alguns amigos sobre meu gosto musical. Sou da MPB. Gosto dos shows sentados, da música calma, com as notas que num arranjo parecem quase uníssonas. Quando me animo, gosto da animação a la Gilberto Gil – a gente se anima e logo já se senta de novo. Quando conversei com os amigos sobre a formação musical, lembro de que prevaleceu uma análise do sertanejo e o entendimento de que são músicas que evocam certo sofrimento amoroso, a construção do trocado, do traído, do abandono, do amante, da infidelidade, quase um tratado da infelicidade.

Me alonguei anos averso ao sertanejo. Seja porque minhas referências musicais no gênero pensam e se situam diferente de mim politicamente, seja porque muitas das letras fazem menção a uma leitura de mundo que eu discorde e sejam reflexo de comportamentos que eu compreendo como sintomas de problemas sociais que temos: machismo, homofobia, patriarcado, racismo, etarismo, consumismo, desigualdade social. Quis distância.

Num sábado ensolarado de setembro, já há alguns setembros, estava dirigindo para o interior de Minas e minha irmã mais velha mandou, no grupo da família, o link de um álbum desses de sertanejo que ouvíamos muito em casa quando éramos menores. Dei o play. Pumba. Foi memorável. Cantei a plenos pulmões, buzinava para todos os caminhoneiros que cruzaram meu caminho e, vez por outra, soltava um berro grave, em alusão a uma brutalidade que o sertanejo supõe.

Me senti vivo. Em paz. Conectado. Próximo. Pertencente.

Quando li Edouard Louis falando sobre o mundo de sua infância, distante geograficamente, mas contemporânea a minha, entendi a sua leitura de mundo – alguém que vivenciou, saiu, racionalizou, entendeu e trouxe para a linguagem os elementos que talvez não façam parte do mundo civilizado. Ou que não sejam bem-vistos. Ou bem quistos. Lembro de terem o posicionado como alguém que deu voz e trouxe visibilidade a todos que são do mundo de onde ele veio. E não me esqueço de dizerem que ninguém o pediu para dar voz...

Experiência semelhante foi ler Annie Ernaux e a ver descrevendo o incomodo do marido em ir visitar os sogros por não conseguir estabelecer diálogo com eles – na narrativa percebemos certo elitismo intelectual. A forma como ela relata sobre o lugar em que veio, a forma como os pais agiam com pessoas de fora, a forma como as pessoas de fora agiam em relação a ela e a sua família. Ficou claro que para a maior parte de nós falta a oportunidade de se pacificar com o lugar de onde viemos.

Não que eu acredite que os autores não pacificaram. Ao contrário: eles expõem que existem a dificuldade em lidar com o mundo do qual viemos. E falar sobre isso, talvez reflita amadurecimento em frente aos sentimentos. Talvez.

O meu lugar passa longe da performance para a qual me visto todos os dias. Normalmente não gosto de estar calçado, de calças ou de camisas para o trabalho. Gosto do pé no chão, da bermuda, da camiseta (algo que incorporei recentemente e veio junto com a aceitação do corpo). Não gosto de conjugar os verbos certos nas frases e nem ter que pensar em coerência e coesão, apesar de admitir que trouxe muito da linguagem do mundo formal para o mundo que chamo de meu lugar.

No meu lugar, gosto de falar alto, de correr e ser eufórico. Gosto da gargalhada e da cerveja na hora do almoço. Acordo pensando na limpeza da casa e já me ponho no mundo para a caminhada – e caminho o mesmo trajeto que faço há 27 anos, porque é a estrada que dá acesso ao bairro onde moro. Caminhando vou observando e pontuando para mim as mudanças geográficas – aqui era a casa do Fulano, ali era o terreno da minha família paterna e hoje é uma escola, foi nesse pedaço que uma vez minha avó contou que pisou em uma cobra que parecia um pedaço de tecido, nessa mata escorria uma água quando eu era menino. Caminhando, também, sou capaz de perceber as inquietações que vão tomando a minha atenção e como elas mudam dia após dia.

O meu lugar mistura o passado, o presente e o futuro e dá a segurança para ser quem sou e me ajuda a sustentar as personas necessárias para que eu possa, ainda que em menor frequência do que eu gostaria, ser o sujeito de pé no chão rindo das amenidades. O meu lugar permite, ainda, que eu reflita sobre ele. Que eu me alimente de elementos que me possibilitam ampliar meu repertório e ir encontrando palavras que nomeam o que é dizível – e me aproximam de compreender o indizível.

Apesar de simples o meu lugar é meu e isso é o que o torna bonito, apesar de nem sempre ser belo; aconchegante, mesmo podendo ser mais confortável; luxuoso, apesar de ser marcado pela simplicidade; correto, mesmo com tantas incongruências. É meu. Ainda que eu coma só macarrão daqui para a frente ou abdique dos carboidratos. Ainda que eu só ouça MPB ou só sertanejo. É meu, mas acolhe. Sou eu e mais um tanto de gente, porque isso eu aprendi sobre o lugar: ele é nosso, mas não necessariamente só nosso. É como quando em uma conversa, alguém diz algo que a gente sabe bem, já vivenciou e, ainda que por milésimos de segundo, sentimos que aquele é o lugar onde deveríamos estar.

É meu.

É meu o meu lugar.

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